“Blau I, II, III” Joan Miró – 1961
Para algumas crianças e adolescentes é necessária a construção de outros espaços de referência que não sejam apenas a escola e atividades complementares. É comum escutarmos dos familiares sobre dificuldades de se comunicar, de socializar com outras crianças, de olhar e de brincar; ficam preocupados também com o futuro dos seus filhos, em quais espaços serão acolhidos.
Os lugares tradicionais de ensino e interação não são muitas vezes suficientes para as necessidades presentes em casos que apresentam maiores dificuldades de adaptação aos espaços sociais. Diante disso, é fundamental a construção de núcleos que não visem apenas a adaptação e a produção, mas que se leve em conta que, quando se constrói mundos diferentes, a forma como cada um se enxerga também pode mudar. As oficinas da equipe ponte são uma estratégia para essa questão, onde o trabalho visa um rigor que explicaremos abaixo.
O tratamento construído a partir das oficinas artísticas em grupo se fundamenta principalmente a partir de dois conceitos psicanalíticos: sujeito e voz. Estes conceitos se diferem da significação dos termos no senso comum. De Sigmund Freud à Jacques Lacan, a Psicanálise contribuiu com a compreensão de que não nascemos sujeito, nos constituímos. Esse processo de constituição subjetiva está intimamente relacionado com a concepção de que o campo do sujeito, segundo Lacan, é efeito, em especial, da linguagem.
Em complemento a isso, no trabalho desenvolvido pela Ponte, evidenciamos a importância da voz nos processos de subjetivação. Esse conceito voz, conforme Vivès (2013) historiciza, foi identificado como objeto por Lacan a partir do campo das psicopatologias e foi levado então, em sua teoria, para a dialética das pulsões*. Ali, ele identificou dois tipos de objetos pulsionais cruciais na constituição subjetiva: objeto da demanda e objeto do desejo – sendo este último constituído pelo olhar e pela voz.
A criança, quando chega ao mundo, é olhada o tempo todo, sem que ela saiba de onde ela é olhada. Para que a criança comece a ter prazer em olhar, é preciso que ela esqueça de um olhar externo que pesa sobre ela e a pressiona.
A VOZ
O mesmo acontece com a voz. A dificuldade é que esses objetos pulsionais são essenciais para que o sujeito advenha, mas para isso, também é importante que se mantenha distância deles. Existe, portanto, uma ambivalência essencial do olhar e da voz. Ao mesmo tempo que é importante que eles estejam presentes, que haja o seu endereçamento à criança (e ela, então, vai poder falar, querer ser escutada, desejar olhar e ser olhada), se a criança é capturada e presa por esses objetos inicialmente externos, ela terá muitas dificuldades (ou até mesmo uma capacidade reduzida) de desenvolver uma linguagem subjetiva e sua própria voz. Nem todos conseguem fazer essa separação tão facilmente, tanto no que diz respeito ao olhar quanto à voz, o que traz dificuldades na constituição subjetiva. A Equipe Ponte trabalha com esse público-alvo que apresenta importantes impasses no laço social e que têm relação com a constituição subjetiva e com a voz de cada um.
O trabalho realizado com as oficinas artísticas se embasa nos estudos de Alain Didier Weill, psicanalista que resgata em Lacan os conceitos de sujeito e voz e de Mauro Mendes Dias, psicanalista que se utiliza desses estudos para apontar a música e a arte como aliadas ao tratamento em casos de graves dificuldades no laço social. As oficinas não visam o ensinamento das ferramentas artísticas no sentido de uma aprendizagem pedagógica e a construção de repertório artístico rigoroso e/ou profissionalizante, ainda que esse possa ser um efeito secundário. Nosso trabalho tem o objetivo de, conforme Vivés (2013) nomeia, propiciar um ambiente terapêutico (clínico) em que estejam presentes “armadilhas” que tiram de cena esse olhar e voz primordiais que pesam, prendem e inibem o sujeito de emergir, de modo a trazê-lo à tona em um trabalho com sua própria voz. Para isso, a música é mesmo essencial e permeia todas as oficinas oferecidas. Ela toca, a dança leva, o corpo mexe, a arte faz falar, o teatro põe em cena, o grupo enlaça e a Psicanálise escuta e articula.
Veja abaixo um pouco de cada oficina e acesse o link TEXTOS E PUBLICAÇÕES para um maior aprofundamento teórico acerca de cada uma delas e da arte como essa aliada na clínica da Psicanálise.
*pulsão é um conceito da Psicanálise que diferencia o ser humano dos animais – não temos apenas instintos, mas desejos e pulsões, que são fundamentais para a constituição do sujeito;
**Referências bibliográficas
Vives, Jean-Michel. A voz na psicanálise. Universidade de Nice Sofia-Antipolis, 2013.
A presença da música nas oficinas: “Violino e Uvas” Pablo Picasso – 1912 / Dança e Canto: “A Dança” Henri Matisse – 1910 / Teatro: “O Guarani” Domenico de Angelis – 1897/1899 /
Pintura: “Untitled” Willem de Kooning – 1974 / Lanche e Culinária: “Still Life with cherries, strawberries and gooseberries” Loise Moillon – 1630